domingo, 6 de outubro de 2019

um amor vulgar


de companhia aprazível
abstruso, mas não arrevesado
franco clandestino
mas era doce e entoado.

ouvia-me as querelas com deferência
diferente, insólito e era raro
divino, danado, desmedido, desmesurado
era de quizilas ou arrebatado

como os segredos de um palimpsesto me assenhorou
inebriante, de mistérios emaranhada
inefável, vertia feito rio por encostas e morro
o desvendar era meu manifesto

mas um dia bastada de mistério
um amor vulgar me tomou
corriqueiro, cafona e caprichado
escandaloso, provinciano, mas não atamancado

chegou feito mesa posta
modesta, farta, atenciosa
de pão, manteiga e café
cheioso, amostrado, cheiro de fé

exagerado, diz que sem mim não sabe viver
brega, me canta pagode do spc
intenso, gosta de falar em sempre e nunca
me agarra, diz que serei sua única.

beca moreno
06.10.2019

Guia de Cultivo

Amor de mãe é erva
É babosa, é um lírio da paz.
Erva medicinal
espada protetora de Santa Bárbara
semente no adverso
força que rompe concreto.
É saber florescer
é estado de apreciação.
Amor da mulher que se convive
exige cuidado
Orquídea geniosa
Rainha-do-abismo
Mulher é terra revolvida
decompositora
é claridade e escuridão
profunda, úmida, orgânica
torrão firme
resistência.
Amor de mulher
é Árvore-da-Felicidade
é boa sorte
prosperidade.
Mulher é cheiro de mato
é canto de passarinho
é a serrapilheira, o sub bosque e o dossel
infinita em seu ciclo
de vida e de morte
O sagrado e o êxtase
Um xamã.
É a folha seca
A copa exuberante
As flores, as sementes e os frutos.
É pólen ao vento
nos zumbidos dos insetos
nos órgãos,
penetrante.
É não caber e ocupar
Os montes, os vales
a planície e a depressão.
Amar uma mulher
e não cultivá-la
é degradação
é particular
amor absorto
pelo jardineiro desleal
Mas a mulher é solo fértil
nasce, vive, morre e renasce em flor.
Beca Moreno
10.05.2019

Por um fio


Há um homem nu em meu banheiro
Seria apenas uma porta se não houvesse um abismo entre nós
Se não houvesse quilômetros percorridos em direções opostas
A água que escorre por seu corpo
Percorre caminhos por onde passei
Enche-me de nostalgia o som da água e do chuveiro elétrico
Zumbido poético
Vapor teleférico
Restos meus na esponja e no sabão
Tocam seu corpo
Penetram seus poros
Tomam-lhe por lugares que já não alcanço
Pequenos espaços privados
Seria apenas uma porta
Se não houvesse entre nós o pudor e o poder
Barreiras transponíveis apenas a barra do meu sabão
Lembrará ainda meu cheiro?
Há de encontrá-lo entre tantos aromas, tantas memórias?
Tempo esfoliante
Distância adstringente
Há um homem nu em meu banheiro
Fora, uma mulher nua,
Se esconde sob os lençóis
Constrangida como seus pensamentos
Observa através da porta
Pela fresta da memória
O corpo a se esfregar em seus cheiros
A mandar pelo ralo toda a distância
de vidro temperado
A água do chuveiro sinaliza
Shhhhhhhhhhhhhhh....
Calados os pensamentos
Observo-o partindo pelo ralo
Deixando seus pelos, pentelhos
Engasgando meu lar em cabelos
E a lembrança que permanece por um fio
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Beca Moreno (2015)