domingo, 18 de outubro de 2009

O último pedaço

Dedicado à L.J.

E naquele dia acontecia algo muito inusitado, o rapaz estranho saía de casa. Estranho porque era quase 6, e a noite já empurrava o dia para trás dos prédios, estranho porque era uma sexta-feira agitada e cansativa de se ver, e estranho porque o rapaz inusitado saía de casa. Eu, parada no ponto de ônibus, encontrei uma distração para os vários minutos que eu passaria ali sentada, vê-lo seguir não era menos interessante que a matéria sobre o prêmio Nobel da paz que eu tentava ler, e vez em quando era interrompida com alguma bizarrice típica paulistana. Pra minha sorte era uma avenida longa, e levemente íngreme, o que me permitia observá-lo ainda por um bom tempo. Ele seguia todo de preto e, alinhado com o muro branco, quase não o via, parecia peças de roupas, sapatos e cabelos se movendo entre os grafites no muro. Os sapatos davam passos curtos, como se não quisessem ir tão longe; enquanto as calças os acompanhavam, o paletó dançava com os braços, uma dança inquieta, onde as mangas entravam nos bolsos da calça,  depois iam em direção ao rosto, à cabeça, e se cruzavam em frente ao peito e, de repente, aconteceu o que eu menos esperava: ele dobrou a esquina. Meus olhos se sentiram profundamente rejeitados, esses que se propunham a acompanhá-lo foram abandonados na primeira esquina: sem despedida, explicações ou um afago de até breve. Orgulhosos que são, rapidamente se voltaram para a revista na tentativa de desfazer o rolo, o rolo feito da revista e o rolo que eles se meteram ao se proporem, inusitadamente, a seguir o rapaz estranho. Todo meu corpo transbordava tranquilidade, tenho um corpo bastante orgulhoso, o que gera grandes conflitos entre ele e minha mente, ocupando o mesmo espaço são como Yin e Yang, Greta Garbo e James Dean, uma fusão do sim e do não, de rebeldia e melancolia que não há como resultar em algo diferente de um grande vulcão ativo, com constantes erupções. E lá veio toda aquela lava vermelha saindo da minha alma quando o vi voltar, trazia na mão um chocolate e algumas moedas. Agora ele já poderia me ver, e apenas essa remota possibilidade já despertava a minha timidez. Passei poucos segundos tentando atrair a curiosidade dos meus olhos para qualquer outro ponto que não ele, mas pelo canto dos olhos o procurava, e estranhamente não o encontrava, assustada com a possibilidade do seu sumiço, voltei meus olhos para onde havia o abandonado e vi que ele atravessara a rua e agora vinha em minha direção. Não sei quantas idéias cabem em poucos segundos, mas garanto que são muitas. Tampouco sei a probabilidade das pessoas pegarem ônibus, talvez seja bastante comum, mas na minha mente há tanta poesia, que não aceito ser acaso estarmos naquele mesmo banco, num mesmo ponto de ônibus, em um mundo tão grande. Experimentei, nesse momento, uma apnéia acordada. E só senti novamente o ar quando estávamos no ônibus, e não sei se por compensação, mas passei a engolir todo o ar que me rodeava ao notar ele num banco de frente para mim. O rapaz estranho parecia ter entrado no ônibus, como quem procura abrigo. O mundo parece estar, a todo momento, desmoronando sobre sua cabeça, porque vejo nele um desabrigado, sempre em busca de proteção. Temia chegar ao ponto no qual teria que descer. Intercalava seus olhares preocupados entre o seu relógio, acreditando na possibilidade de desacelerar o tempo, e as ruas que deixava para trás, pois, em sua indecisão crônica, nunca soube exatamente em que ônibus embarcar, a hora de parar, de dar o sinal, de partir.
A disputa acirrada entre a rua e o relógio me provocava de alguma maneira. Comprei a briga. Não por vaidade, mas porque percebia naquela indecisão uma falta de rumo que me lembrava, e em alguns minutos mudara a minha direção: me veio um súbito desejo de me perder.
Sempre acreditei que temos ainda muitos órgãos dos sentidos a serem descobertos, um deles deve se localizar um pouco pra lá do cantinho dos olhos, capaz de perceber os olhares mais distantes. Sim, o olhar só pode ser material, deve haver alguma química lançada decifrada pelo cantinho dos olhos. Olhava para ele e via pouco mais que seu cabelo: sua nuca, e a bochecha que começava a se curvar, já se percebendo uma nuance avermelhada. Lançava os olhares mais intensos, que suplicavam por um oi. Nem por educação, nem por desejo recíproco, foi a curiosidade que lhe ganhou me direcionando o olhar – durante vários segundos suas pálpebras se exibiram e se guardaram sem leveza, como se nem mesmo seus olhos soubessem o que fazer quando se trata de ações voluntárias. Apresentei-me brevemente, tentei conversar, mas seus olhos fugiram do assunto. Só me restou permanecer no monólogo que me tomava o tempo até então: ouvia seu corpo dizendo-me meias-palavras, algumas mentiras, contava histórias, e algumas verdade ocultas encantadoras. Ele não me parecia o tipo de rapaz que sonha acordado, aliás, pagaria suas viagens durante um ano se isso me permitisse conhecer meia dúzia dos seus pensamentos mais íntimos. Mas essa incógnita não deve sonhar nem dormindo, ou sonha, como uma forma de extravasar e, irritado, procura esquecê-los todos ao despertar, pois odeia se ver agindo de maneiras que abomina. Odeia ser, mesmo que virtualmente, um alguém que não é, um alguém que não controla, e lhe daria ânsia relembrar, enquanto escova os dentes, como durante toda a noite pode ser tão inconsequente.
Ele levantou, e sem me dar adeus deu o sinal. Perguntava-me ansiosa se aquele sinal era para mim, ou apenas para o motorista. Olhei para trás e peguei seus olhos em flagrante olhando em minha direção. Disfarçou, como se aquele fosse parte do percurso que seus olhos faziam, fotografando uma panorâmica do abrigo que agora abandonaria, provou mais um pedaço do seu chocolate e partiu. Ignorei a possibilidade daquele sinal não ser para mim e resolvi acompanhá-lo. Moço tão frágil não pode andar assim sozinho. Atravessou a rua apressado, como se eu representasse algum perigo, mas que tolice, era apenas uma garota pequena, dos pulsos finos, que nem que desejasse algum mal fazer, conseguiria atingir o rapaz estranho sob a armadura.
Do outro lado rua havia um parque, a grama não era tão verde, e um mato intruso deformava o tapete. Não havia folhas secas sob as árvores, apenas dois copos plásticos e papéis usados. Não se ouviam os pássaros, apenas o som dos motores, das buzinas, vozes misturadas, e algumas pombas bicando restos. Não havia estrelas no céu, a praça era iluminada por lâmpadas que repentinamente se apagavam. Não havia um lago, nem chafarizes, nem uma estátua. Queria apressar o passo para o alcançar e dizer qualquer coisa que o convencesse de alguma coisa, mas afásica o vi partir: o rapaz estranho procurava algum abrigo que o protegesse daquela paisagem casual, que outrora pareceria feia, mas naquela noite, sob aquele luar, e após uma intensa conversa, havia um inusitado desejo de degustar o que há de melhor: o último pedaço do chocolate. Mas ele conhece bem a efemeridade das coisas, e não é de seu agrado, ao perceberem isso todas as flores daquela praça quedaram tristes e murcharam. Ele dobrou cuidadosamente o papel e guardou esse prazer para mais tarde.

Sobre as coisas passageiras

Não é por ser efêmera que não pode ser adorável, disse a flor.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Na radio, na cabeça.

Se eu pudesse ser quem, o tempo todo, você quer
se eu pudesse ser quem você quer o tempo todo
o tempo todo, se eu pudesse ser, quem você quer?
o tempo todo, quem você quer ser?
se você pudesse ser quem quer, o tempo todo...
se eu pudesse ser quem você quer,
se eu pudesse o tempo ser...
se.

Open you eyes

All this feels strange and untrue and I won't waste a minute without you. My bones ache, my skin feels cold and I'm getting so tired . The anger swells in my guts and I won't feel these slices and cuts, I want so much to open your eyes, cause I need you to look into mine. Tell me that you'll open your eyes.
Get up, get out, get away from these liars, 'cause they don't get your soul or your fire, take my hand, knot your fingers through mine, and we'll walk from this dark room for the last time.
Every minute from this minute now, we can do what we like anywhere. I want so much to open your eyes, 'cause I need you to look into mine.
All this feels strange and untrue and I won't waste a minute without you.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Sobre mim

Minha vida é um livro aberto escrito em esperanto.

domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre relacionamentos

Diz a física: Quanto mais forçar, maior o trabalho.

Ainda hoje

Dedicado à E.C.

Ahh... Ele era tão barbudo e alto. Exatamente como idealizei: barbudo e alto.
As coisas foram acontecendo de maneira tão inesperadas, tão casuais, tão ‘acaso’ais, tão convincente. Cheguei a achar que daria certo. Por acaso num show, por acaso na rua, por acaso sob meus lençóis, por acaso: o ocaso. 
À meia-luz me confessou segredinhos, e já no escuro eu via seu rosto e cada um dos seus movimentos desajeitados. Em seu peito Kingsize fingia dormir, fechava os olhos e assim passava horas tentando entrar no seu sonho. Sagazmente esfregava meu pescoço sobre sua camisa branca, expulsava meu cheiro dos meus poros, como uma tentativa de lhe fazer me lembrar mais tarde. 
Era engraçado ver seus dedinhos para fora do meu lençol, e ainda hoje me pergunto se partiu por não caber em minha cama. Bobo, se soubesse o conforto que há em meu peito. E eu jamais quis uma cama grande, sempre achei que o excesso de espaço é um convite indesejado. Gosto mesmo é do aperto. Já há distância demais entre as pessoas, dentro das pessoas, que só o que quero é espremer, exprimir meus devaneios, expelir meus desejos, e me espreguiçar as oito da manhã com certo prazer, tomar um café preto melhor que Kopi Luak, e um pão adormecido com manteiga, mas em minha boca tudo se mistura com o sabor do seu beijo e, de ímpeto, descubro uma receita mítica, talvez afrodisíaca. Então deita novamente sobre meu travesseiro, como quem pede mais cinco minutinhos, talvez um abraço, ou um café da manhã de verdade. Ainda hoje me pergunto se partiu por causa do pão adormecido. 
 Analiso por algum tempo ele deitado, e a maneira como seu cabelo acompanha as curvas que faz a fronha amarrotada, até que se levanta sem dar tempo de eu ter feito qualquer coisa além de o olhar, ajeita o cabelo afastando-o da nuca num movimento convidativo e se levanta. Ainda hoje me pergunto se partiu por achar que não o queria ali por mais cinco minutinhos.
Oferta-me a mão, olho para elas questionando se devo puxá-las sobre mim, ou usá-las de apoio para me erguer e, por mais que me fosse óbvio o que eu desejava, tive medo de o machucar com meu jeito atrapalhada, e apenas me levantei. Ele olhou no relógio, afastou minha franja que caia sobre meus olhos, acariciou meu rosto, e colou seu corpo no meu: meu quase-clímax, sentir em um novo dia aquele homem barbudo e alto colando no meu corpo, colando seu corpo, e alguns desejos dos quais ainda hoje tento me livrar. 
Deu-me um abraço apertado, aperto que mais tarde pararia em outros lugares e do qual jamais consegui me livrar. Por mais alguns minutos nos comunicamos assim, com toques e transferências e ele deixou minha casa. 
Andou pela rua como quem é observado, e de fato era, então aproveitou que eu guardava seu caminho para não se preocupar com os problemas mundanos, as placas e os carros que iam e vinham, pôs todos os seus esforços em balançar o cabelo, esboçar um sorriso, e dar sinal ao tróleibus de maneira exata. Cada gesto minuciosamente elaborado, como uma maneira de me fazer lembrá-lo mais tarde.
Talvez estivesse se vingando do cheio na camisa, bem vi que notara meu cheiro quando olhou para o lado e seu nariz se pôs sobre o ombro esquerdo. Não sei quanto da perfeição desse encontro foi poesia minha, mas ainda hoje me pergunto porque ele partiu. Talvez devesse telefonar. Mas ainda não passou das 10.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O que eu queria que fosse verdade...

"Vou contar o que ela vê nele: ela vê tudo o que não conseguiu ver no próprio pai, ela vê uma serenidade rara e isso é mais importante do que o Porsche que ele não tem, ela vê que ele se emociona com pequenos gestos e se revolta com injustiças, ela vê uma pinta no ombro esquerdo que estranhamente ninguém repara, ela vê que ele faz tudo para que ela fique contente, ela vê que os olhos dele franzem na hora de ler um livro e mesmo assim o teimoso não procura um oftalmologista, ela vê que ele erra, mas quando acerta, acerta em cheio, que ele parece um lorde numa mesa de restaurante mas é desajeitado pra se vestir, ela vê que ele não dá a mínima para comportamentos padrões, ela vê que ele é um sonhador incorrigível, ela o vê chorando, ela o vê nu, ela vê o que ele tem de invisível para todos os outros.

Agora vou contar o que ele vê nela: ele vê, sim, que o corpo dela não é nem de longe parecido com o da Daniella Cicarelli, mas vê que ela tem uma coxa roliça e uma boca que sorri mais para um lado do que para o outro, e vê que ela, do jeito que é, preenche todas as suas carências do passado, e vê que ela precisa dele e isso o faz sentir importante, e vê que ela até hoje não aprendeu a fazer um rabo-de-cavalo decente, mas faz um cafuné que deveria ser patenteado, e vê que ela boceja só de pensar na palavra bocejo e que faz parecer que é sempre primavera, de tanto que gosta de flores em casa, e ele vê que ela é tão insegura quanto ele e é humana como todos, vê que ela é livre e poderia estar com qualquer outra pessoa, mas é ao seu lado que está, e vê que ela se preocupa quando ele chega tarde e não se preocupa se ele não diz que a ama de 10 em 10 minutos, e por isso ele a ama mesmo que ninguém entenda."

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O conflito entre o sim, o não, e o sin.

Dedicado à M. Madalena

Ah moço, não faças isso, te digo de antemão
devias é ter medo de moça tão ousada
essa que bem sabe que a impedindo estás a impelindo
contra si, contra a pele,
pele que de nada entende
além do calor, do frio, e de alguns arrepios.

E se surpreenderá ao descobrir
que o sim e o não se tangenciam
e então já terás gasto demasiada saliva com tantos nãos,
mas tenhas calma que a recuperará no inevitável
quando o talvez pilantra roubar
todos os sins do teu corpo.